Só se escolhe como se vive
Das coisas que mais me impressionam na vida, é a morte.
O como, o quando, o porquê, são coisas que só me lembro aquando da morte de outrém.
Cresci educada por uma religião que me ensinou que nascemos do pecado e que devemos levar a vida inteira a condenar-nos e a tentar redimir-nos do mal. A morte é certa mas o céu e o inferno são consequências directas do que por cá fazemos.
A morte do meu avô fez-me repensar algumas coisas.
Ele foi um homem que viveu a vida inteira para os negócios, para o dinheiro, e para os petiscos com os amigos.
Família era algo que não o preocupava muito. Apesar de a ter, nunca senti que (n)os levasse a sério, ou (n)os tivesse em consideração.
Viveu a vida inteira como se não precisasse de ninguém. E não precisou.
Cresci sabendo que a minha mãe não tinha pai. Ou melhor tinha, mas ele não queria saber dela. Não se falavam. Eu era miúda não percebia porquê. E lembro-me que passei por uma fase em que até perguntava.
Lembro-me dele, nas minhas férias de verão na casa da praia. A casa era dele, mas não me lembro de uma conversa de avô para neta que ele alguma vez possa ter tido comigo, nem de ele me ensinar nada daquelas coisas que nos filmes os avôs fazem com as/pelas netas.
Lembro-me que na praia havia um bar dancing putedo, mesmo ao pé da "nossa" casa e que era lá que o meu avô passava as noites, enquanto a minha avó se juntava às outras mulheres na converseta e eu brincava com as outras crianças ao macaquinho do chinês.
Era o pai da minha mãe. Mas pai foi coisa que nunca soube ser.
Há seis anos atrás a minha mãe recebeu um telefonema da segurança social. O meu avô estava velho, morava sozinho na praia e precisava de alguém que fosse cuidar dele porque já não era autosuficiente. Os diabetes começavam a atacar em forte e estava praticamente cego.
A minha mãe bem tentou dizer que ele nunca foi pai dela e que ele tinha outros dois filhos mais novos de uma outra mulher, mas a senhora não quis saber. É a filha mais velha, disseram-lhe do outro lado da linha e legalmente tem obrigações a cumprir.
A partir daí a minha mãe passou a ter pai. Um pai de quem cuidar. Só isso. Todos os dias ela ía à praia e entre arrumar a casa, ir às compras, fazer a comida, e tratar de tudo o que implica cuidar de alguém, mudava-lhe a fralda e dava-lhe banho.
Impressionou-me a decadência na altura. De uma parte e de outra.
A minha mãe envelheceu uns 10 anos por ano. Andava cansada. Desgastada. Nunca a ouvi queixar-se.
O meu avô tampouco. Nunca o ouvi agradecer ou reconhecer.
Do dinheiro que se orgulhava de ter em novo nada restara. A falta de vista a piorar nos últimos anos e o orgulho para pedir ajuda levaram-no a perder tudo, ninguém sabe como.
A minha mãe lá fazia esticar a reforma dele e não raras vezes punha do dela.
A vida no meu avô na altura era ficar na escuridão a que a cegueira o condenava, à espera que ela chegasse para o tratar e alimentar. Não fazia nada sozinho. e as vezes que tentava caia, e no chão ficava à espera que ela chegasse para o levantar.
Foram dois anos muito difíceis para os dois. Não sei para qual dos dois o pior.
2 anos depois e umas luvas bem grandes oferecidas a quem decide e a minha mãe lá conseguiu lugar num lar para o meu avô. A reforma dele não chegava para o pagar, mas a minha mãe com a vida que estava também já não conseguia aguentar.
No lar, o meu avô levava os dias sentado sem fazer nada. Nada o alegrava. quando o ia visitar pouco falava. nunca teve nada para me contar. Nada para me ensinar. Uma vida inteira.
Perguntava-me muitas vezes qual seria a validade de viver assim. Os dias inteiros à espera que o tempo passasse. Sem nada para fazer. Nenhuma fonte de prazer. Nada. Escuro. Solidão. E consciência... Só isso lhe restava. Esteve sempre lúcido.
Nem comer era um prazer, pois com os diabetes não podia comer nada doce e muito pouco sal na comida, ou nenhum.
No último ano, e contra todas as expectativas do nada pode ser pior, ficou pior. A cada dia ainda pior. No último ano as pernas começaram a gangrenar. Não conseguiam controlar os níveis da diabetes. Passou o Natal no hospital. Sem festa. Cortaram-lhe uma perna. A outra a apodrecer de dia para dia. Deixou de comer. Enfiavam-lhe uma seringa das grandes pela boca a dentro com uma especie de papa. Já não falava. E eu pensava que para viver assim, seria melhor morrer. Acho que ele também. Por isso é que se recusava a dar sinal de si e fingia que não ouvia e que não dava conta de nós quando o íamos visitar.
Morreu dia 20 de Março.
E já foi tarde.
Já há muito que todos o tínhamos perdoado as escolhas que fez.
No funeral de um homem tão popular, amigos não estava nenhum... Só nós. As que para ele nunca fomos ninguém.
Tu não sabes avô, mas essa tua filha é uma das melhores pessoas que conheço!
Passou ao lado da vida sem saber o que é Amor. Nem sequer pela filha.
Eu... fiquei a respeitar mais a morte. Ser velho não é fácil. E ninguém conta que ela por vezes tarde em chegar..
Mas lá diz o outro: "Não se morre quando se quer, mas quando se pode".
3 Comments:
A historia do meu avô materno vai ser igual à do teu...mais triste é que não deram hipotese que gostassem deles.
um bjo
O meu avo tambem esta mal... fraquinho... e a minha mãe cuida dele. Mas ele sempre foi uma boa pessoa, agora ficou velho e fraquinho, mal fala, custa ver como uma pessoa fica com a idade... é triste mas é verdade... mais triste é pensar que um dia chegará a nossa vez...
Impressionante a tua história. Infelizmente não cheguei a conhecer o meu avô materno, que a minha mãe dis ter sido um anjo na terra. Por sua vez o paterno, abandonou o meu pai( que só o conheceu já era homem) e avó para casar com outra mulher. A vida, as pessoas são assim...
beijinhos
Post a Comment
<< Home